sábado, novembro 06, 2010

coisas de vidro

já tinha postado no Sabedoria, mas...

O tempo pára enquanto anita segura o jornal

O jornal aberto em espelho

Não mostra um trem descarrilhado

Milhares de mortos, uma criança perdida

É o caderno cotidiano

Os benefícios da reciclagem

E uma nota no canto esquerdo

O marido de anita está fora

Ele anda na rua e não sabe

Na coleira vai Rodolfo, nariz úmido colado ao chão

O cão pára frente ao sinal

Na rua ele não é um cachorro

É um soldado, uma enfermeira, um pai amoroso

Não há tempo para postes e latas de lixo

Não há tempo para latir para o carroceiro que passa

Há que se levar este homem que não enxerga para casa

Esse homem que leva ovos e leite e lhe dará um biscoito quando chegarem

Quando ele poderá se coçar e ser um cachorro

Anita não decora a casa há anos

Nada jamais muda de lugar

A banqueta um pouco à direita é um tropeção

Uma porta inadvertidamente aberta, um hematoma

Cada coisa em seu lugar e é como se Rubens enxergasse

10 passos entre a porta e a cozinha

escova de dentes: 1 palmo à esquerda da pia

E por isso a casa idêntica por pelo menos 20 anos

O mesmo perfume há 30

Rubens e o cão no elevador

Um signo de pontinhos: terceiro andar

São 10 passos até a cozinha, um biscoito

Uma nota na página esquerda

Caderno cotidiano

Desimportante

Um perfume que sai de linha

Uma fragrância que não mais se fabrica

O único rosto que um marido conhece

O mesmo cheiro dos lençóis, dos travesseiros

Que a três passos adentro da porta diz:

Anita já chegou

Anita está na cozinha

Anita está na sala e come pipocas vendo televisão

Anita que será uma estranha

Ao fim de dois dedos

Dentro de um vidro

sobre a penteadeira

3 palmos à esquerda de uma caixa de bijuterias

a 20 cm do espelho

a 1 metro e meio

do chão.

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